Rio de Janeiro / RJ - sexta-feira, 26 de abril de 2024

DOENÇA DO REFLUXO GASTRO ESOFAGEANO

 

Doença do Refluxo Gastroesofágico

 

 I. Introdução

   O refluxo de material ácido do estômago para o esôfago não significa necessariamente doença. Ele é comum e ocorre diversas vezes ao dia em todas as pessoas, mas por curtos períodos de tempo e esse ácido é eliminado do esôfago rapidamente. A mucosa do esôfago é pouco resistente ao ácido, mas tem a capacidade de suportar esse refluxo normal (ou o chamado fisiológico)

   Em alguns casos, a mucosa do esôfago pode ter sua resistência diminuída ou o ácido refluir mais vezes ou por mais tempo que a mucosa esofágica pode resistir. O ácido pode ainda alcançar a garganta, ou causar sintomas pela simples irritação do esôfago. Nessas situações, o refluxo deixa de ser considerado normal e trata-se de doença do refluxo gastroesofágico fisiológico.

 

   II. Fisiopatologia

   Há diversos fatores que mantém o refluxo gastroesofágico dentro dos níveis fisiológicos:


Fatores que impedem o refluxo gastroesofágico

Anatômicos

entrada oblíqua do esôfago no estômago ( promove o fechamento quando o estômago está cheio )

roseta da mucosa gástrica ao nível da cárdia ( as pregas se encaixam como uma engrenagem )

elementos de fixação do estômago ( artéria gástrica esquerda e ligamento frenoesofágico ), que mantém o mesmo no lugar

pilar direito do diafragma ao nível do hiato*

fator valvular ( prega de Gubaroff )

Fisiológicos

pressão do esfíncter inferior do esôfago (EIE)*

eficiência do mecanismo de clareamento esofágico ( capacidade do esôfago de empurrar o ácido através das suas contrações )

saliva ( pelo alto teor de bicarbonato e proteínas tamponantes, neutraliza o ácido no esôfago )

resistência da mucosa esofágica à agressão ( é pouco resistente ao ácido, pepsina, sais biliares e enzimas pancreáticas )

volume e tempo de esvaziamento do conteúdo gástrico

* fatores mais importantes


   Diversas condições facilitam o aparecimento do RGE em níveis patológicos, levando à doença. Um dos mais conhecidos porém mais controversos é a hérnia de hiato, ou hérnia hiatal. Normalmente, o esôfago termina no estômago pouco abaixo do hiato diafragmático. Na hérnia, a transição esofago-gástrica está localizada acima do hiato, o que faz com que o estômago seja submetido à pressão do diafragma, não o esôfago. Enquanto esse é fino e tende a permanecer fechado pela pressão, o estômago tem paredes mais espessas e não cede à pressão do diafragma, deixando espaço livre para que o ácido reflua para o esôfago. No entanto, mesmo sendo mais freqüente em pessoas com DRGE que nas normais, pode haver hérnia mesmo em pessoas sem a doença.

   Condições que aumentam a pressão intra-abdominal também facilitam o refluxo por empurrar o conteúdo gástrico para cima, incluindo ascite, obesidade, gravidez e exercícios extenuantes. Outras condições, que levam à redução da pressão intra-torácica, "puxam" o conteúdo do estômago para o esôfago, principalmente as doenças pulmonares e otorrinolaringológicas, aonde o esforço do paciente de respirar leva à essa alteração de pressão.

   A influência do Helicobacter pylori na DRGE ainda não está estabelecida. Há estudos que sugerem menor freqüência do DRGE em portadores do H. pylori, assim como há estudos que poderiam indicar um aumento na incidência de DRGE após o tratamento e erradicação da bactéria. O H.pylori produz amônia, que neutraliza parte do ácido, além da gastrite causada pela bactéria alterar a produção de ácido. Mas essa relação ainda necessita de muita pesquisa para ser compreendida. Até o momento, não há indicação ou contra-indicação de erradicar oHelicobacter pylori em portadores do DRGE.

 

   III. Sintomas

   Os sintomas da DRGE podem ser divididos em típicos ( pirose e regurgitação ) e atípicos ( de origem esofágica, como disfagia e odinofagia, ou extra-esofágica, como tosse crônica e asma ).

   Pirose ( queimação ) é a sensação de queimadura que sobe do epigastro ( aonde fica o estômago, pela região retroesternal ( atrás do osso central do tórax ) e que pode chegar até o pescoço. Costuma estar relacionado a alimentos e à posição ( geralmente piora quando se deita ). Cerca de um terço das pessoas tem esse sintomas uma vez ao mês e 7% de todas as pessoas tem esse sintoma diariamente. Só com esse sintoma, é possível realizar o diagnóstico correto da DRGE em 80% dos casos ( valor preditivo positivo ). No entanto, a ausência de pirose não descarta a presença de DRGE, pois apenas 80% dos portadores de refluxo apresentam esse sintoma.

   Regurgitação é o refluxo de pequenas quantidades de material de sabor ácido para a boca, geralmente após as refeições. Ocorre em cerca de um terço dos portadores da doença do refluxo gastroesofágico, mas podem ocorrer ocasionalmente com qualquer pessoa, principalmente após refeições em grande quantidade.

   Odinofagia é a dor após engolir, quando o alimento está passando pelo esôfago. Esse sintoma é relativamente raro na doença do refluxo gastroesofágico, pois geralmente reflete erosões mais graves ou úlceras, particularmente aquelas causadas por infecções do esôfago ( monilíase, citomegalovírus, herpes e outras ) ou por medicamentos.

 

Manifestações atípicas da DRGE

Manifestações

Sintoma ou doença

Esofágicas

Dor torácica não cardíaca

Pulmonares

Asma

Tosse crônica

Fibrose pulmonar idiopática

Fibrose cística

Pneumonias de repetição

Apnéia do sono

Bronquiectasias

Doença pulmonar obstrutiva crônica

Otorrinolaringológicas

Otite média

Sinusite crônica

Gotejamento nasal posterior

Laringoespasmo

Estenose de laringe

Estenose glótica

Estenose de traquéia 

Granulomas e pólipos de laringe

Laringite crônica

Laringite posterior

Úlcera de laringe

Úlcera de aritenóide

Hiperqueratose de laringe

Faringite

Rouquidão

Pigarro

Sensação de globus

Neoplasia de laringe

Orais

Aftas

Erosões dentárias

Halitose

Alterações gengivais

 

 

   A intensidade e freqüência dos sintomas não estão relacionados à gravidade de erosões esofágicas nem ao aparecimento de complicações sérias, com úlceras esofágicas, esôfago de Barrett ou câncer.

  

   No entanto, alguns sintomas são considerados sinais de alarme e exigem uma investigação mais detalhada:

 

Sinais de alarme

Disfagia

Odinofagia

Anemia

Hemorragia digestiva

Emagrecimento

História familiar de câncer

Náuseas e vômitos

Sintomas de grande intensidade

Sintomas predominantemente noturnos

  

 IV. Diagnóstico

   A endoscopia digestiva alta é o método de escolha para visualização e avaliação da mucosa, devido à facilidade de sua execução e disponibilidade na maioria dos centros médicos em nosso meio. No entanto, a ausência  de alterações endoscópicas não exclui o diagnóstico de DRGE, já que 25 a 50% dos pacientes  dos pacientes com sintomas típicos apresentam endoscopia normal, sendo portadores de doença do refluxo não-erosiva. Apesar de não ser o método ideal para constatar a presença de refluxo gastroesofágico, a endoscopia permanece o exame inicial pois permite avaliar a gravidade da esofagite e realizar biópsias quando necessário.

 A pHmetria de 24 horas permite caracterizar o refluxo gastroesofágico, evidenciando a quantidade de episódios e o tempo em que o conteúdo ácido permanece em contato com o esôfago. Se realizado com dois sensores ( dois canais ), permite a avaliação de refluxo ácido para a porção alta do esôfago, ajudando o diagnóstico de manifestações atípicas da DRGE. Está ainda indicada para pessoas que não obtiveram resposta satisfatória ao tratamento e naqueles casos de doença do refluxo não-erosiva.

   Outra opção muito utilizada é o teste terapêutico. Quando não há sinais de alarme, o paciente é jovem e os sintomas são típicos de DRGE, pode-se tentar o tratamento medicamentoso e observar o resultado. Uma melhora de 75% dos sintomas em 1 semana é considerada diagnóstico de DRGE.

 

   Há outrs opções de métodos diagnósticos, mas são pouco utilizados e têm indicações limitadas:

Método

O que analisa

Quando usar

Raio-X contrastado

Avalia o contorno interno do esôfago, permitindo a análise de distúrbios de contração, úlceras e estenoses ( estreitamentos ), mas não permite a análise das contrações como a manometria nem a realização de biópsias como a endoscopia.

Esclarecimento da disfagia e odinofagia, ou quando não há nenhum outro exame disponível.

Teste de Bernstein & Baker

O gotejamento, através de uma sonda, de ácido no esôfago distal, promove o surgimento de sintomas semelhantes às queixas do paciente com DRGE.

Como só ajuda o disgnóstico de refluxo mas não dá nenhuma outra informação, não se usa mais.

Cintilografia

Analisa o que acontece com o material radioativo que foi engolido. Se aspirado, esse material é visto no pulmão. Permite ainda analisar o tempo que demora para o estômago empurrar todo o material para o intestino.

Quando há suspeita de aspiração pulmonar, em crianças pequenas, que não toleram pHmetria e quando é necessário medir o tempo de esvaziamento gástrico.

Manometria

Avalia o perfil de contração da musculatura do esôfago, permitindo avaliar se a contração está adequada, se há distúrbios na mesma e ainda a pressão do esfíncter inferior do esôfago.

Suspeitas de distúrbios motores do esôfago e na avaliação pré-operatória da DRGE se a opção cirúrgica de tratamento for a escolhida.

  

 V. Tratamento

   O principal conceito que deve ser compreendido pelo portador da DRGE é que essa é uma doença crônica, cujos sintomas tendem a voltar logo em seguida ou pouco após o final do tratamento. Sendo assim, mudanças de comportamento devem ser feitas para diminuir ou evitar que o refluxo persista, evitando assim não só os sintomas, mas também as complicações ( estenoses, úlceras, câncer ). Isoladamente, essa medidas têm pouco efeito, mas devem fazer parte do tratamento:

Medidas comportamentais

Elevação da cabeceira da cama em 15-20 cm

Não se deitar nas duas horas posteriores às refeições

Evitar o cigarro

Evitar alimentos que agridam a mucosa ( ácidos )

Evitar alimentos que favoreçam o refluxo

frituras e gorduras

tomates e molhos de tomate

alho e cebola

doces e chocolate

mentolados

refrigerantes

bebidas alcoólicas

café, chá preto e mate

Evitar medicamentos que facilitem o refluxo

teofilina

anticolinérgicos

beta-bloqueadores

nitratos

bloqueadores do canal de cálcio

Evitar medicamentos que agridem a mucosa

quinidina

doxiciclina

anti-inflamatórios

   Várias classes de medicamentos foram utilizados no tratamento do DRGE. Antiácidos, procinéticos e bloqueadores H2, apesar de promoverem alívio dos sintomas, são ineficazes no tratamento, levam a efeitos colaterais e/ou promovem tolerância no organismo. O tratamento da DRGE é universalmente realizado com inibidores de bomba protrônica ( omeprazol, lansoprazol, rabeprazol, rabeprazol e esomeprazol ) em todas as suas fases ( aguda, crônica, recidiva e manutenção ) em doses variadas. O tratamento deve ter duração mínima de 6 a 12 semanas, durante a qual a dose poderá ser reduzida gradualmente. Pessoas que conseguem se manter sem medicação por mais de 6 meses sem sintomas poderão ser tratados apenas quando esses surgirem, mas as demais poderão precisar de um tratamento contínuo, com a mínima dose necessária para que continuem sem sintomas. Em alguns casos, no entanto, o tratamento poderá ser cirúrgico:

 

 

 

Indicações do tratamento cirúrgico da DRGE

DRGE complicada

úlceras, esôfago de Barrett, câncer

DRGE não complicada

manifestações atípicas comprovadamente pelo refluxo

necessidade de uso contínuo de IBP em menores de 40 anos de idade

necessidade de uso contínuo de IBP em pacientes que não podem arcar com os custos

  

 

VI. Bibliografia

Eisig JN, Barbuti RC, Rodriguez TN, Rossini ARA e Ferrari Jr aP em Condutas em Gastroenterologia, 2004, Ed. Revinter